Bendita Intertextualidade!

 BENDITA INTERTEXTUALIDADE!
                                                                                                                                                                                                 (texto de Pedro Mello, postado em 18.02.2012)
                       
http://www.falandodetrova.com.br/colunadopedromello

          Nos Estudos Linguísticos e Literários nós chamamos de intertextualidade ao processo criativo em que um autor toma outro texto como ponto de referência. Na realidade, a intertextualidade pode ocorrer também em outras artes, mas é na Literatura que alcança efeitos mais notáveis. Muitos brasileiros certamente se lembram das inúmeras paródias da "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias. A paródia é uma criação intertextual, embora com finalidade humorística. Na Literatura de Língua Portuguesa, a intertextualidade é antiga: Camões, n'Os Lusíadas fez referências às epopeias clássicas e nos sonetos fez referências a temas explorados pelo seu contemporâneo Francesco Petrarca. 

          Recebi esta semana um belíssimo soneto de PEDRO ORNELLAS, mestre indiscutível do difícílimo verso hendecassílabo. Para quem não se recorda, o verso hendecassilábico, de 11 sílabas muito marcadas, possui um ritmo cantante devido à obrigatoriedade de ictos no segundo, quinto, oitavo e décimo primeiro verso (2-5-8-11). O decassílabo é mais "fácil" pela possibilidade de marcar o icto no sexto e décimo verso, com variantes (o decassílabo heroico, assim chamado por ser o verso da poesia épica, a poesia que canta os feitos de heróis) ou no quarto e oitavo verso (o decassílabo sáfico, cujo nome vem da poetisa grega Safo, que viveu no sétimo século aC). Para não ser excessivamente teórico, exemplifico: 

"Che / guei... / che / gas / te... / vi / nhas / fa / ti / ga da [2-4-6-10]

e / tris / te... e  / tris / te e / fa / ti / ga / do eu /  vi / nha..." [2-4-8-10]

(Olavo Bilac, Nel mezzo del camin) 

          É possível deduzir, pelo exemplo acima, dos dois primeiros versos do soneto bilaquiano, que o decassílabo admite a alternância de ritmos em um mesmo poema. Essa alternância, porém, não existe no hendecassílabo, que possui o ritmo 2-5-8-11 do início ao fim do poema, o que o torna peculiarmente difícil de  ser praticado. PEDRO ORNELLAS, porém, caprichoso e teimoso (!), não se deixa desanimar pelo pormenor técnico e há muitos anos vem praticando com inegável talento esse ritmo cantante. (Justiça seja feita: outros poetas também se dedicam ao hendecassílabo, mas é nos versos do Ornellas que a forma e o conteúdo se abraçam de modo encantador.) 

          POIS BEM... depois dessa longuíssima introdução, esclareço o motivo deste texto: Pedro Ornellas, com base em um soneto de nossa amiga DIVENEI BOSELI, compôs um hendecassílabo primoroso. O soneto de Divenei é um alexandrino com aquele gosto de amor que só ela consegue dar a um soneto. O soneto de Divenei, um lindo alexandrino (12 sílabas, também de técnica dificílima), chama-se TOQUE DE SILÊNCIO. Ei-lo aqui, na íntegra:
 

TOQUE DE SILÊNCIO 

Foi breve. Começou ao toque da alvorada,
quando este coração, herói de outra trincheira,
marchando de emoção entrou para a fileira
e logo improvisou a frágil barricada.

Foi lindo. Aconteceu da mística maneira
bem própria da paixão: manteve mascarada
a efêmera ilusão que envolve o tudo e o nada
e nem sequer doeu ver baixas na bandeira...

Foi tudo. Anoiteceu. Na última peleja,
derrota o antigo herói quem não o mereceu
e exibe o coração, sem honras, na bandeja...

Foi triste. Terminou... No peito que era meu,
aos toques do clarim, silente, não lateja:
sepulto no silêncio, o coração morreu!
 

          Pois não é que Pedro Ornellas reparou num detalhe, que só mesmo um poeta de seu naipe seria capaz de notar? O Pedroca reparou nas frases iniciais de cada estrofe ("Foi breve", "foi lindo", "foi tudo", "foi triste") e percebeu que, juntas, formariam um verso de onze sílabas...!!! Só o Pedroca mesmo para ser tão observador... (Depois eu é que sou o "estruturalista"...) Tendo o mote em mãos, ele compôs um soneto inspirado no soneto da Divenei. Assim, acho que posso afirma que Divenei foi uma "Musa involuntária"... Eis aqui o soneto de Pedro Ornellas: 

FOI 

Foi breve... Foi lindo... Foi tudo... Foi triste...
História irreal que na areia se escreve,
esboço de lápis riscando de leve...
Foi breve, passou... mas a marca persiste.
 
Foi lindo... Foi tudo... Foi triste... Foi breve...
Romance que à mente em voltar sempre insiste;
Já tive, não tenho... Existiu, não existe.
Foi lindo, tal qual nenhum verso descreve!
 
Foi tudo... Foi triste... Foi breve... Foi lindo...
o amor que nem sei se foi mesmo ou me iludo
foi triste e no entanto alegrou minha estrada!
 
Foi triste... Foi breve... Foi lindo... Foi tudo...
e embora passado, já morto, já findo,
é tudo o que o sonho consegue de um nada. 

            De quebra, como se não bastasse por si só a dificuldade do ritmo, Pedroca ainda construiu um soneto paralelístico, repetindo os motivos no início de cada estrofe, mas alternando a ordem dos sintagmas, que se embaralham... mas não se misturam! Observe que cada elemento é colocado à frente dos demais e todos aparecem praticamente na mesma disposição original, apenas deslocados um à frente do outro. Se fizermos uma leitura, digamos "geométrica", comparando os versos horizontal e verticalmente, perceberemos uma perfeita simetria, como se estivéssemos diante de uma pintura renascentista... 

          BENDITA INTERTEXTUALIDADE!!! E eu, da minha parte, só posso dizer que me orgulho dos amigos que tenho, Divenei Boseli e Pedro Ornellas...! Como eu queria só uma gotinha do talento desses dois...!