Coleção “Trovadores Brasileiros”
Organização de Luiz Otávio e J.G. de Araujo Jorge (extraído do site www.jgaraujo.com.br)
Oswaldo Soares da Cunha
Se, como escreveu certa ocasião Eloy Pontes, as trovas constituem a prova de fogo dos
poetas, Soares da Cunha venceu galhardamente essa prova... O seu livrinho “MARIA”
é a prova irrefutável desta afirmação. O delicado poeta, residente em Belo Horizonte,
é um trovador rico espontâneo, cheio de lirismo e emoção.” Escrevi estas palavras há
quase dezessete anos, em 7 de setembro de 1946.
Quatro anos depois, numa crônica: “Um trovador das Alterosas”, dizia eu:
“...Graça, simplicidade, malícia, sentimento, espírito de síntese, são, entre outras,
as virtudes que se destacam das belas trovas de Soares da Cunha.”
Quando organizava “Meus Irmãos, os Trovadores”, Coletânea de duas mil trovas de autores brasileiras e divulgava pela imprensa do Brasil e Portugal quadras de centenas de trovadores, escrevi numa página mimeografada: “Oswaldo Soares da Cunha. forma com Djalma Andrade e Nilo Aparecida Pinto um trio magnífico de trovadores de Belo-Horizonte. E' natural de Minas Gerais, advogado e muito jovem. Em 1943 estreou com o livro “Estrela Cadente”; no ano seguinte publicou um belo e raro conjunto de trovas “Maria” e a seguir: “Rosa dos Ventos” e “Quadras”. Sua especialidade é a trova, e, aí, poucos o podem igualar. E' um trovador esplêndido, de um lirismo e graça que encantam. Muitas de suas trovas quer sejam líricas, filosóficas, mordazes ou regionais, são dignas de Antologia. Suas quadras já estão bem espalhadas pelo Brasil e Portugal.” (Rio, 14-1-1951)
No entanto, Soares da Cunha não é apenas trovador. Em 1952 quando publicou “Sonetos e Poemas”, escrevi uma crônica sobre seu livro e entre outras coisas dizia: “A primeira parte é composta. de vinte sonetos feitos com arte e bom gosto, todos dignos de atenção.”
Em 1954 comentei em outra crônica: “Soares da Cunha, trovador mineiro, envia-nos de Belo Horizonte “Quadras e Pensamentos” - da Editora Acaiaca. O poeta, já bastante conhecido e apreciado, é, sem dúvida alguma, um grande trovador.”
Finalmente, em 1962, enviou-me o trovador seu último livro “Mínimas” composto de pensamentos e trovas. Que poderia dizer mais? Pelas linhas que acabaram de ler podem aquilatar a sincera e antiga admiração que tenho pelo trovador Soares da Cunha. As minhas palavras não devem ser tomadas como uma, apresentação, pois o autor é bastante conhecido e dela não necessita. Apenas, como um dos organizadores da Coleção “Trovadores Brasileiros”, amigo e admirador do poeta focalizado, senti-me honrado de escrever esta pequena introdução.
Será fácil compreender que muitas trovas bonitas não estão aqui incluídas. Veterano e fértil trovador, Soares da Cunha é dono de muitas outras quadras que mereceriam figurar entre as cem deste volume. Esta, por exemplo:
“Feliz aquele que ainda
não te viu, formosa Inês:
- A mulher nunca é tão linda
como da primeira vez.”
ou esta outra:
“Se no ver-te eu me apaixonei,
não ponhas a culpa em mim:
culpado é quem me deu olhos
e te fez tão linda assim.”
E, entre outras mais que poderia citar, transcrevo esta, repleta de tédio e de melancolia:
“Quero sair pelo mundo,
cansei-me deste lugar,
quero partir para longe
e nunca mais regressar!...”
Com estas três citações poderão avaliar a dificuldade de selecionar apenas cem trovas de Soares da Cunha. Mas as que compõem este livrinho darão, por certo, uma idéia do valor e da inspiração desse trovador mineiro.
LUIZ OTAVIO
Rio, 12-11-1963
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Cem Trovas de Oswaldo Soares da Cunha
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n.º 1 n.º 2
Tão doce é a prisão do amor Pode fazer-se um favor,
que, em vez de sentir saudade, fazer dois e mesmo três,
eu hoje lamento os dias que apenas será lembrado
que passei em liberdade. aquele que não se fez.
n.º 3 n.º 4
Pequena assim, - que contraste! Por mais alto que cheguemos,
Assim pequena, meu bem, sempre a ambição é mais alta:
depois que em meu peito entraste nunca vemos o que temos,
não coube aí mais ninguém? só vemos o que nos falta.
n.º 5 n.º 6
Postas à margem das linhas, Não há riqueza, no mundo,
que pena que a gente tem que à liberdade equivalha
de ver, ao longe, as casinhas e há gente que, por dinheiro,
olhando passar o trem! mais do que escravo trabalha.
n.º 7 n.º 8
Penso às vezes, com tristeza, Por que que a esperança é verde?
vendo a estrada percorrida: -É verde porque a ventura
- Feita de dias tão longos, que ela promete na vida
como é curta a nossa vida jamais se encontra madura.
n.º 9 n.º 10
O próprio sol, tu não vês, Que teu amigo não entre
que enorme poder encerra do teu lar na intimidade:
não aclara de uma vez onde começa a mulher,
senão metade da terra. aí termina a amizade.
n.º 11 n.º 12
Confesso que me arrependo, Uma árvore longa e seca,
quando fico a me lembrar perdida no chapadão,
dos pecados que, podendo, foi a imagem mais perfeita
eu deixei de praticar. que já vi da solidão.
n.º 13 n.º 14
Hora cheia de mistério, Vieste, Felicidade;
que faz um medo profundo, mas, ai de mim, só agora
é quando a boca da noite, fiquei sabendo quem eras,
se fecha, engolindo o mundo. depois que te foste embora.
n.º 15 n.º 16
A esperança é uma criança No poço, onde a lua dorme,
que ninguém pode com ela: -pura, serena, sem jaça,
nem bem saiu pela porta, cai uma pedra e, de chofre,
torna entrar pela janela. a imagem lhe despedaça.
n.º 17 n.º 18
Não sei como tendo em frente Coração não tem memória,
os pobrezinhos de Assis, é um ditado verdadeiro:
o mundo, meu Deus, não sente o amor que temos por último,
vergonha de ser feliz! parece ser o primeiro.
n.º 19 n.º 20
Juntos, ficamos calados. Coração, reflete bem,
Também, para que falar? procura outro bem-querer
Entre dois enamorados, é inútil bater por quem
basta a linguagem do olhar. só gosta de te bater.
n.º 21 n.º 22
O meu olhar é um peralta Ah! quem nos dera, querida,
que não tem jeito, mocinha: por um capricho da sorte,
aquilo que tanto escondes, que, vivendo a mesma vida,
o sem-vergonha adivinha... nos matasse a mesma morte!
n.º 23 n.º 24
Passa o navio, deixando Não tem idade alguma,
um rastro imenso, a alvejar, quem tem apenas metade:
qual se fosse a Via Láctea, a liberdade, ou é inteira,
que do céu caísse ao mar!... ou não é liberdade.
n.º 25 n.º 26
Muitas vezes nada dizem De olhos abertos no escuro,
palavras em profusão, a insônia nos dá um faro
e um só suspiro diz tudo com que distinguimos tudo,
que há dentro do coração. tudo se forma tão claro.
n.º 27 n.º 28
Eu tive um mau pensamento, Para evitar certos furtos,
e envergonhada coraste; o melhor é colocar,
queria saber somente , por mais que pareça estranho
como foi que adivinhaste. o ladrão a vigiar.
n.º 29 n.º 30
És uma flor delicada; Um susto a terra sacode,
todavia, se te assanhas, quando estridente e sonora,
ao ser acariciada, atrás dos montes explode
com teus espinhos arranhas . a gargalhada da aurora.
n.º 31 n.º 32
Na clara manhã de Minas, Por isso estão sempre em luta,
a andorinha de asas pretas em cima, as vagas do mar:
é uma criança traquinas a posição que uma ocupa,
dando no céu piruetas! outra não pode ocupar.
n.º 33 n.º 34
Perco o tempo, se te espero; Eram férteis os teus lábios;
mas em verdade eu te digo neles plantando um só beijo,
que de novo o recupero, colhi aos milhares,
quando me encontro contigo. rubras flores do desejo.
n.º 35 n.º 36
Escondamos nosso amor Colhidos todos os beijos
aos olhares de quem passa; que havia pelos caminhos
amor de portas abertas, e acabado os desejos,
é um amor que não tem graça... resta colher os espinhos.
n.º 37 n.º 38
Responde o que é preferível, Onde, ó mar das despedidas,
tu que em grandezas te expandes: mar da angústias passadas,
ser grande em coisas pequenas, onde as lágrimas caídas
ou ser pequeno nas grandes. do alto das montanhas amuradas?...
n.º 39 n.º 40
Quando eu morrer, não me enterrem A mulher que é muito doce,
debaixo de um monumento: não me parece ser boa:
quero voar pelos ares, o doce, quanto mais doce,
lancem-me as cinzas ao vento mais depressa nos enjoa.
n.º 41 n.º 42
Em repouso sobre a areia, Vida triste, vida horrível,
as tuas unhas pintadas vida ingrata e aborrecida;
lembram conchinhas vermelhas quanto mais te maldizemos,
pela praia abandonadas. mais te queremos, ó Vida!
n.º 43 n.º 44
Tenho nome em minha terra, Por excesso de amor-próprio,
lá na terra sou alguém; a todo custo queremos
mas aqui, em terra estranha, que os outros façam de nós
ai de mim, não sou ninguém! a idéia que nós fazemos.
n.º 45 n.º 46
Menina, quando passares, Para a sede, que é infinita,
cuidado com o teu pezinho: não temos nós, cada dia,
não vás machucar minh'alma, senão uma gota dágua,
que se estendeu no caminho. na enorme taça vazia
n.º 47 n.º 48
O louco que, sem cuidado, Os teus olhos são tão negros
avança contra o inimigo, e possuem tal magia,
não é que tenha coragem, que, meu bem, quando me fitas,
é que não sabe o perigo. anoitece em pleno dia.
n.º 49 n.º 50
O tempo produz milagres: A esperança é uma mentira
chega na vida a haver hora que a vida prega na gente
que a gente sente saudade todo dia... e todo dia
das penas que teve outrora. a gente crê novamente
n.º 51 n.º 52
Quando vou telefonar-te Amo-te tanto, mas tanto,
fico tão alvoroçado, que neste fogo, este ardor,
que é bem possível que escutes eu não sei bem se te amo,
meu coração, do outro lado. ou se amo o meu próprio amor!
n.º 53 n.º 54
Jurei não. tornar a ver-te A oração que Deus escuta
nunca mais... Não resisti: com mais amor e carinho,
- Mais forte que o juramento desconfio ser aquela
foi a saudade de ti. que a gente reza baixinho.
n.º 55 n.º 56
A mulher que, pelo modo Eu quero só que me digas,
com que se veste e se enfeita, já que é tão fácil assim,
mostra muito as suas curvas, como afastar-me de ti,
não é lá muito direita. se moras dentro de mim.
n.º 57 n.º 58
Não te entristeças, querida, Moça pobre que aparece
por não seres a primeira: de roupa e sapato novo,
mais vale que, em minha vida, desperta logo suspeitas
tu sejas a derradeira. e cai na língua do povo.
n.º 59 n.º 60
Quero às vezes me matar, Há luz escura no mundo?
mas logo quero viver, Respondo sem hesitar,
quero rir, quero chorar... que há sim: - a que vem do fundo
- Tudo isto por te querer! do abismo de teu olhar!
n.º 61 n.º 62
Ó píncaro azul da serra, O amor mais forte enfraquece,
das nuvens por entre o véu: por mais que jures constância,
- Ficas tão longe da terra. . . se entre os dois o tempo cresce,
- Ficas tão perto do céu... se entre os dois cresce a distância.
n.º 63 n.º 64
Ai, esquecer-vos quem há-de, Quantas vezes, neste mundo,
doces mentiras de amor! a gente a vida maldiz,
Ao vosso lado, a verdade e passando muito tempo,
não tem o menor valor! vê, então, que era feliz.
n.º 65 n.º 66
Prazer, flor linda e cheirosa, Quase sempre é aborrecida
cheirosa e linda, pois não; toda festa preparada:
mas tão frágil que, ao colhê-la, a alegria, nesta vida,
se desfaz em nossa mão. não chega em hora marcada.
n.º 67 n.º 68
Reflete, a mulher que viste O que mata por amor,
passar há pouco na rua, é quase como um suicida:
seu encanto, em que consiste? exterminando a quem ama,
- Apenas em não ser tua. extermina a própria vida.
n.º 69 n.º 70
O poeta, estranho ser Entre os dois corpos, a dança
que vive sempre a sonhar, própria do tempo moderno,
olha esse mundo sem ver, onde o espaço é tão estreito,
tendo outros mundos no olhar. cabe o céu e cabe o inferno...
n.º 71 n.º 72
A mulher quando é bonita, Quando penso nos teus seios,
modelo de perfeição, minha mão, devagarinho,
faz muito bem para a vista, vai em lentos devaneios
mas faz mal ao coração. tomando a forma de um ninho.
n.º 73 n.º 74
Sabe a mulher que, no amor, Peguei-lhe na mão, primeiro;
esta é uma regra infalível: depois ela suspirou;
- Quanto mais ela resiste, tomei-a depois nos braços,
mas se torna irresistível. depois o mundo acabou...
n.º 75 n.º 76
Pra te esquecer, teus retratos Comecei a gostar dela,
rasguei um por um . . . Em vão! quando foi? pergunto a mim.
Não pude rasgar aquele Mas já perdi o princípio
gravado no coração. daquilo que não tem fim.
n.º 77 n.º 78
Se acaso um beijo de fogo Quero dizer-te um segredo
aplico na tua orelha, em uma linguagem louca:
tu saltas, como se fosses não dê boca para ouvido,
picada por uma abelha. mas de boca para boca....
n.º79 n.º 80
Para os outros, sou feliz. Eu, se te desse um presente,
Deixa que pensem assim: tinha de ser um colar
Seja eu feliz para os outros, feito de contas de estrelas
já que o não sou para mim. num fio azul do luar!
n.º 81 n.º 82
Saudade, vaga presença, Felizes nunca seremos,
coisa que bem não se explica: pois que sempre desejamos
algo de nós, que alguém leva... ter aquilo que não temos
algo de alguém, que nos fica. e estar onde não estamos.
n.º 83 n.º 84
Pela mão que, por descuido, Vive o homem mergulhado
se liga com outra mão, no trabalho, em louco afã ,
é que se transmite o fluido do céu deixando o cuidado
que nasce do coração. para o dia de amanhã.
n.º 85 n.º 86
A raiva maior que tive, Rosinha tem tanto pejo
eu tive porque sonhei e tanto horror ao prazer
que estava quase a beijar-te, que, no momento do beijo,
e de repente acordei! fecha os olhos pra não ver...
n.º 87 n.º 88
A raiva maior que tive, Não tenho medo do inferno,
eu tive porque sonhei menina, ao pecar contigo:
que estava quase a beijar-te ante a delícia do crime,
e de repente acordei! pouco me importa o castigo.
n.º 89 n.º 90
Tu, ó Maria da Glória, És como a praia alvejante,
que tanta graça irradias, é como a espuma do mar,
mais que Maria da Glória, és como a vela distante
és a glória das Marias! que fascina o meu olhar!...
n.º 91 n.º 92
Repete outra vez, querida, "Felicidade é quimera!"
o que acabas de falar; Costuma a gente exclamar.
enquanto estava te olhando, Porém, lá dentro, baixinho,
esqueci de te escutar. nunca a deixa de esperar.
n.º 93 n.º 94
Ao homem sempre se fala Das dores todas da vida,
que escude a voz da razão; não pode haver maior dor
mas é que a razão se cala, que passar a vida inteira
quando fala o coração. sem dor nenhuma de amor.
n.º 95 n.º 96
Ela disse que eu não Amor de primeira vista,
tinha coração, e retruquei: nenhum crédito merece
“Ora, é justo que não tenha, pois quem ama facilmente
se o que eu tinha já te dei...” também facilmente esquece.
n.º 97 n.º 98
Amigos, são todos eles Tristeza, fiel tristeza,
como aves de arribação: esposa doce e querida
- Se faz bom tempo, eles vêm... minha única certeza,
- Se faz mau tempo, eles vão... nas incertezas da vida.
n.º 99 n.º 100
Aos olhos cheios de afeto De querer-te como quero,
da mãe, que o viu pequenino, que culpa é que posso ter?
seja qual for sua idade, Bem sabes que sou sincero,
o filho é sempre menino. se te quero é sem querer.
in
Coleção “Trovadores Brasileiros”
Organização de Luiz Otávio e
J.G. de Araujo Jorge
Editora Vecchi – 1959