Coleção “Trovadores Brasileiros”
Organização de Luiz Otávio e J.G. de Araujo Jorge (extraído do site www.jgaraujo.com.br)
Adauto Gondim
1915-
O nome era Adauto Soares Godinho... Mas, ao começar sua vida
literária, publicando seus primeiros trabalhos na "Gazeta de Noticias",
de Fortaleza, os tipógrafos implicaram com o “Godinho” e breviavam
para Gondim. E o nosso poeta não contrariou o desejo dos tipógrafos e
passou a assinar as suas trovas como Aflauto Gondim.
Nasceu no sitio Andreza, a 12 quilômetros de Pedra Branca, sobre a
Serra de Santa Rita, na parte central do Ceará, no dia- 17 de janeiro de
1915. Filho de José Soares Godinho e Nasária Soares de Nazaré
Adauto é antigo jornalista. foi Delegado Regional de Ensino e
estudante de Direito. Em 1953, disse-me com muito humor que já
interrompera seus estudos quatro vezes mas nem que fosse aos setenta
anos teria que se formar... Nessa conversa - gravada em fita - Adauto
Gondim com seus espírito jovial e simples, contou-me passagens
pitorescas de sua vida e falou muito sobre trovas e trovadores. Grande
apreciador do folclore, refere-se com admiração a Leonardo Motta,
aos cantadores populares Cego Aderaldo, Anselmo, Jacob Passarinho.
Aos trovadores, já falecidos, de sua terra: Antonio Sales, Vital
Bizarria, Álvaro Martins, Júlio Brandão, e aos vivos: Cruz Filho
Filgueiras Lima, Júlio Maciel, Stefânia Bezerra, Augusta Campos e outros.
Há uns vinte e cinco anos mais ou menos, li uma trova no Correio da
Manhã. ( “Para o Álbum de Mlle...”) e que trazia o nome - naquela
época ainda desconhecido para mim: Adauto Gondim. Gostei da
simplicidade, fluência e concepção da quadra:
“Saudade – alívio das dores.
e dentro da alma se estampa
como um canteiro de flores
plantado sobre uma campa.”
Decorei a trova e guardei o nome do autor. Foi ela pois, o cartão de
visita de Adauto. Somente alguns anos mais tarde, conversando com
o poeta Elmo Elton, pude localizar o poeta Adauto Gondim no Ceará.
E, desde então, mantivemos uma constante correspondência e foi
crescendo nossa amizade. Mas, é claro. que ao escrever estas linhas
de introdução ao livro de “Cem Trovas de Adauto Gondim” não é
somente o amigo que fala mas, sobretudo, o antigo pesquisador e
apreciador de trovas.
Em 1951, divulgando as trovas do poeta de Pedra Branca pela
Imprensa do Brasil e de Portugal, assim escrevi numa página
mimeografada:
“E' um primoroso trovador. Suas trovas são repletas de doçura,
harmonia e sentimento. De grande espontaneidade, talento e
fecundidade, Adauto Gondim é um dos maiores trovadores vivos do
Brasil.”
Cada leitor escolherá, entre as cem, as trovas de seu agrado. Mas não
resisto à tentação de apontar algumas.
Esta, tão singela e emotiva:
“Da minha vida mesquinha
suporto as dores cantando,
pois minha mãe - coitadinha! -
não pode me ver chorando”"
se, na que leram é o filho amoroso que fala,
nesta outra é o esposo e o pai que confidencia:
“Meu destino de troveiro
foi o lar que Deus me deu.
minha filha e um jasmineiro
plantado num chão que é meu”.
Às vezes usa também a ironia:
“Nunca me chames de inato
porque com outra casei:
podia eu, metal barato,
dar liga a ouro de lei?”
Conta Adauto, com muita graça. naquele seu sotaque de nortista. o
seguinte: Certa ocasião convidaram-no para assistir a uma festa de
casamento. No meio da festa sabendo das suas qualidades de trovador,
começaram a insistir para que dissesse uma trova dedicada aos
noivos. Tanto foi a insistências que o nosso trovador saiu-se com esta:
“Lá vem os noivos chegando...
Assisto a festa... E, depois,
fico, invejoso, pensando
na festa só deles dois...’
E à minha pergunta se houvera protesto ou silêncio ou qual fora o desfecho, respondeu:
“Houve silêncio como era natural, o noivo ficou rubro que parecia uma flor de
mandacaru não sei se vocês conhecem o fruto do mandacaru?...
parece que o noivo perdeu o apetite e a festa terminou mais cedo que estava
sendo marcado. . . e eu fiquei desambientado - como era natural -
diante da reação...mas felizmente terminou em nada...”
Este é o trovador que irão apreciar...
Espontâneo, jovial, lírico, sentimental.
Luiz Otavio
Rio, 13-02-1963
in
Coleção “Trovadores Brasileiros”
Organização de Luiz Otávio e
J.G. de Araujo Jorge
Editora Vecchi – 1959
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100 Trovas de Adauto Gondim
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n.01 n.02
Da trova fiz o meu pão De meus idílios o fado
minha cantiga inocente, me traz em triste labor:
a voz do meu coração quanto mais sou desprezado
e o sentir da minha gente. mais aumenta o meu amor
n.03 n.04
Prometo dar-te um milhão Vendo-te assim tão formosa,
de beijos, se me disseres de porte esbelto e sereno
quem tem o meu coração para intrigar uma rosa
que perdi entre as mulheres. chamei-te cravo moreno.
n.05 n.06
Nosso amor, que se renova, Da distância em que me vejo
aumenta em tal proporção quero ir pelos espaços
que não cabe numa trova voando para o teu beijo,
nem dentro do coração fugindo para os teus braços
n.07 n.08
Saudades - alívio das dores Parece uma coisa louca:
e dentro da alma se estampa para aumentar meu desejo
qual um canteiro de flores eu vejo que tua boca
plantado sobre uma campa Deus fez em forma de beijo.
n.09 n.10
— Vi teus braços... que ventura! — Na noite de núpcias. O Gama
teu colo... as pernas... que gosto! encontra a esposa envolvida
Agora, tira a pintura, num lindo roupão e exclama:
Que eu quero ver o teu rosto. — Posso, enfim, ver-te vestida!
n.09 n.10
Quem tiver a alma doente Penso em ti de olhos fechados
não fuja deste caminho: e o pensamento aprofundo:
recorde a mulher ausente ah! se eu tivesse ao teu lado
faça trova e tome vinho. para glória do meu mundo!
n.11 n.12
Sobre minha enfermidade No teu jardim, entre flores,
disse o doutor, com razão; feliz estou ao teu lado
é o germe de uma saudade meu calendário de dores
destruindo o coração. hoje marcou feriado.
n.13 n.14
Rico de amor como eu Mulheres que estão me olhando
não há quem possa igualar, pensando no mesmo assunto,
e o muito que Deus me deu são como freiras rezando
é pouco para te dar. na intenção de um só defunto.
n.15 n.16
Deus pensou em nós. Primeiro Adoro a treva ao açoite
para esculpir nosso amor, do vento que não tem dono:
deu-me uma alma de troveiro Deus fez o escuro da noite
deu-te a ternura de uma flor. para a carícia do sono.
n.17 n.18
Não sei de maior pecado: Quando os raios prateados
não sou santo e, como tal, do luar beijam a noite,
vi meu retrato guardado pede a saudade pernoite
dentro do teu manual. nos corações namorados.
n.19 n.20
Meu coração triste e frio, No silêncio da avenida,
sofrendo sempre em segredo, passeando pela alfombra,
faz lembrar ninho vazio um casal desenha a sombra
na solidão do arvoredo. do destino de outra vida.
n.21 n.22
Amor que passou - rosário Eu quando tiver certeza
de saudade e de ilusão, que meu bem já não me quer,
folhinha de calendário irei matar a tristeza
que a gente atira no chão. nos braços de outra mulher.
n.23 n.24
Meu coração, se a esperança Amor perfeito suponho
dentro dele se renova, se houvesse seria assim:
se alegra qual a criança ela dentro do meu sonho,
que veste uma roupa nova. seu sonho dentro de mim.
n.25 n.26
De feia, se alguém te chama Não te valeu Santo Antonio,
nunca diz porque razão teu santo casamenteiro
à feia, que sente e ama, recorre agora ao demônio
Deus também deu coração. procura um catimbozeiro.
n.27 n.28
Inverno, a terra se veste Inda recordo, querida,
de flores em profusão, foi numa noite de lua,
somente a minha alma agreste te beijei e a minha vida
vive em terno verão. se misturou com a tua.
n.29 n.30
Maria, quando eu morrer, Só porque vivo te amando,
se Jesus me condenar, pelo bem que tu me querer,
deve também se perder eu sei que vivem chorando,
quem tanto me fez pecar. com inveja, outras mulheres.
n.31 n.32
Trouxe o tempo radiosa O tempo com paciência,
nova aurora à tua sina: roubou meu sonho de Fada,
botão transformando em rosa, levou minha adolescência
hoje moça, ontem menina. e envelheceu minha amada.
n.33 n.34
Meu destino de troveiro Minha vida é uma balança
foi o lar que Deus me deu, pesando, com igualdade,
minha filha e um jasmineiro a tua eterna lembrança
plantado num chão que é meu. e a dor da minha saudade.
n.35 n.36
A dor que minha alma corta As trovas que estou compondo,
de maneira aguda e infinda, com a mais ardente emoção,
é ter-te à conta de morta são aves que vão deixando
sabendo que és viva ainda. o ninho do coração
n.37 n.38
Eu sei da dor que sacode As tuas faces de santa
tua lama louca de amar, têm encanto de arrebol
mas sei também que se pode e eu sou o galo que canta
fazer essa dor passar. saudando a ti que és meu sol.
n.39 n.40
Tu me negaste carinhos, Dá de graça o que recebes
fugindo dos meus amores: de graça se diz, em suma,
planta velha, com espinhos, e o que te peço e me negas
morre despida de flores. não te custou coisa alguma.
n.41 n.42
Eu gosto de ver Maria Fui à missa e rezei muito,
a se banhar na lagoa, depois de haver comungado,
qual uma garça bravia deixei a igreja e encontrei-te:
que se enxerga a gente, voa. nem Deus evita o pecado.
n.43 n.44
Nunca me chames de ingrato Para quem tem coração
porque com outra casei: sofrendo por seus amores,
podia eu, metal barato, foi que se fez violão
dar liga a ouro de lei? e o canto dos trovadores.
n.45 n.46
Quando sobre a natureza Na minha cova - meu leito
cai a noite escura e calma, eterno - por caridade
é como o véu da tristeza ninguém plante amor perfeito,
descendo sobre minha alma. dou preferência à saudade.
n.47 n.48
Na história da minha vida A trova é gemido brando,
nunca mais falei em dores breve cantiga inocente,
depois que te vi, querida, que dizemos suspirando,
na estrada dos meus amores. pensando na amada ausente.
n.49 n.50
Longe de ti, com certeza, Quando te vejo passando
não suporto a soledade... com teu porte de rainha,
Sei que morro de tristeza eu suspiro, relembrando
que me acabo em saudade. o tempo em que foste minha.
n.51 n.22
Vem a saudade e, num instante, É verdade que não queres
minha alma triste procura entender a minha dor,
como um luar deslumbrante e eu sei de muitas mulheres
invadindo a noite escura. que morrem por meu amor.
n.53 n.54
Guarda a lembrança em meu peito Está tão lindo o luar!
de extinta felicidade E eu trouxe o meu violão...
se existisse amor perfeito Acorda que vou cantar,
como seria a saudade? vem ouvir meu coração!
n.55 n.56
Ao pecador abençoa, Nem sempre a face do espelho
curar seus males procura: mostra exato as dimensões:
vê que a graça também voa há quem dê o bom conselho
por cima da lama impura. com segundas intenções.
n.57 n.58
Meu amor em ti não medra, Tua promessa dourada,
quem procura teus carinhos que me fizeste à partida,
atira flores em pedra é promissória assinada,
dá beijos para os espinhos. sem edôsso e já vencida.
n.59 n.60
Meu coração delirante Nas minhas faces desnudas
muitas mulheres amou eu recebi, com pavor,
e, embora tão inconstante, teu beijo como o de Judas
perto de ti sossegou. vendendo Nosso Senhor.
n.61 n.62
No cofre do pensamento De quem favores te pede
tranquei a minha paixão, nunca procuras fugir:
e a chave, por meu tormento, só sabe a dor de quem pede
foi cair na tua mão. quem precisa e vai pedir.
n.63 n.64
“Não mais te tenho amizade” Da minha vida mesquinha
Mandei-te, um dia, dizer. suporto as dores cantando,
Mas só Deus sabe a saudade pois minha mãe - coitadinha -
que sinto por não te ver... não pode me ver chorando.
n.65 n.66
Por mais que ocultes e prendas Meu coração sem carinho
eu sei que trazes, formosa, de teu amor, que tormento!
nos seios, por entre rendas, É qual se fosse um moinho
dois lindos botões de rosa... parando à falta de vento.
n.67 n.68
Do amor que trago na mente Destaco a minha folhinha
confesso que nada espero: quando o sol nascendo vem:
- Ela não diz o que sente, o calendário da vida
nem eu digo o que quero... mais um dia a menos tem...
n.69 n.70
Lá vem os noivos chegando... Quem nega Deus, dá profundo
Assisto a festa... E, depois, mergulho da alma na treva
fico, invejoso, pensando e, ao morrer, deixando o mundo,
na festa só deles dois... qual a esperança que leva?...
n.71 n.72
Procura fazer o bem, Dos negros pecados teus,
que é fonte das harmonias, que Satã fez seu tesouro,
não faças nunca a ninguém tu pedes perdão a Deus
o mal que tu não querias. através de um terço de ouro.
n.73 n.74
Blusa verde, saia rubra, Teus olhos que já entendem
no teu corpo de criança: a minha ardente paixão,
o rubro é meu desespero são olhos que me suspendem
o verde a minha esperança. um palmo acima do chão.
n.75 n.76
Dou-te a prova, como queres, Teu coração, já tristonho,
do meu grande amor, querida: vive num sono profundo:
entre as mais lindas mulheres desperta! dou-te o meu sonho,
foste minha preferida... vamos fazer outro mundo.
n.77 n.78
Vou beirando um precipício Teu olhar sereno e terno
quando recebo os teus beijos: sobre os meus olhos pousou,
sinto em tua boca o início qual chuva de fim de inverno
do fogo dos meus desejos. num campo que já secou.
n.79 n.80
Ela diz a toda gente Vibrando as cordas do pinho,
que me adora e me quer bem, tu pedes para eu cantar:
mas, o que meu peito sente só canto se tomar vinho
nunca direi a ninguém. e se a noite for de luar...
n.81 n.82
Minha alma a tristeza invade, Saudade - é tarde a findar,
quando a tarde vai no fim, é amor que se acabou,
e eu fico a sentir saudade é desejo de voltar
de quem não sente de mim. ao tempo que já passou.
n.83 n.84
Como a nuvem que no espaço Quando deixei minha terra,
em fumaça se desfaz, em noite de lua cheia,
são os castelos que faço, trouxe saudades da serra,
são meus sonhos de rapaz. da gente de minha aldeia...
n.85 n.86
Como a ventura estou vendo Saudade - doce lembrança
ser também teu coração: terna visão do passado,
só passa por mim correndo, retalhos de uma esperança
nunca me deu atenção! num coração desgraçado.
n.87 n.88
Não há no mundo conforto Quem tiver amor desfeito
que a gente possa levar fique, ao luar, violão,
à mãe que vive a chorar que as mágoas fogem do peito
a falta do filho morto. e as dores do coração.
n.89 n.90
Quando eu quero transformar Aos pés de Nosso Senhor
minha vida em paraíso eu sei que rezas, enfim,
busco a luz de teu olhar pedindo por nosso amor,
e o encanto de teu sorriso rogando só para mim.
n.91 n.92
Já cantei a imagem tua Teu beijo dado com gosto
em trovas cheias de amor: na febre desta paixão,
nasci em noite de lua, tem calor do sol de agosto
por isso sou trovador. nas várzeas do meu sertão.
n.93 n.94
Ao ver-te deu-se um milagre, Do nosso amor a bonança
minha alegria é sem fim, terminou, nada mais resta
foi-se a noite e hoje se abre senão a triste lembrança
novo sol dentro de mim. que vivo a sentir da festa.
n.95 n.96
Ao som da minha guitarra A trova que, suspirando,
peço a Deus o teu carinho, ao por do sol escrevi,
ter coração de cigarra é trova que fiz pensando
e a vida de um passarinho nuns olhos que não mais vi.
n.97 n.98
Quando sinto o teu perfume O fio d´água correndo
de amores fico perdido, do cume ao sopé da serra
a ponto de ter ciúme é o leite que está descendo
(santo Deus!) do teu marido. dos seios virgens da terra.
n.99 n.100
Não há quem pague inocente. Quando a tarde triste e fria
A dor tem sua razão. cai sob um céu nevoento
Portanto sê paciente costumo chamar meu dia
e espere a compensação de saudade e de tormento...
in
Coleção “Trovadores Brasileiros”
Organização de Luiz Otávio e
J.G. de Araujo Jorge
Editora Vecchi – 1959