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AS TROVAS NAS BALAS DE EUCALIPTO
(publicação: 11.06.2012 - texto de Pedro Mello)
Ao contrário de muitas pessoas, não costumo idealizar a infância e repetir aquele surrado (e tosco) bordão "era feliz e não sabia". Era feliz, sim, porque fui criado por meu pai e minha mãe e tive muito amor de ambos. Mas a vida era muito mais difícil do que hoje. Não tenho saudade, por exemplo, daquele horrível tênis "conga" que usava na pré-escola ou da monstruosa TV em preto em branco (com válvula e estabilizador!) que precisava esquentar, tampouco das zombarias que sofria na escola por ser gordo! Havia coisas boas e coisas más, como a vida de todo mundo, mas não relativizo as más nem supervalorizo as boas. Cada coisa em seu lugar. A vida é assim mesmo!
Uma de minhas lembranças mais remotas (e devo isso a Maria Thereza Cavalheiro) são as "gotas de pinho Alabarda" e suas trovas autocolantes. Que criança não gosta de doces? Além dos chocolates e outras guloseimas, gostava em especial das balas de eucalipto que vinham em uma embalagem verde com o desenho de um pinheiro.
Antes de eu ter dinheiro, meu pai comprava essas balinhas pra mim. Depois que passei a ganhar "mesada", eu mesmo comprava essas balas. Em cada pacotinho vinha um adesivo em papel autocolante com uma trova. E eu gostava das trovas e colava aqueles adesivos nas capas de meus cadernos da escola. Muitas vezes a trova era acompanhada de um desenho de fundo, na maioria relacionado ao tema da composição. Criança, não sabia o que eram aqueles versos, mas achava bonitos, a ponto de colecionar e, adolescente, tentar escrever alguma coisa daquele jeito... Eram, se minha memória não falha, todas trovas com rimas ABAB, isto é, rimando o primeiro verso com o terceiro e o segundo com o quarto, como no adesivo abaixo, com uma trova de Colombina. (Querida com vida - 1o. e 3o. - e padroeira com companheira - 2o. com 4o.)
Mais tarde, lendo mais sobre poesia e pormenores técnicos, descobri que existem muitas trovas que não apresentam a rima do 1o. e do 3o. verso, rimando apenas o 2o. com o 4o.; alguns não consideram esse tipo de trova, mas é trova do mesmo jeito. Um belo exemplo é a trova a seguir, de Octávio Babo Filho, premiada nos I Jogos Florais de Nova Friburgo, em 1960, quando ainda não existia a exigência de duas rimas em trovas para concursos. Na trova de OBF aparece rima apenas entre o 2o. e o 4o. verso:
Se toda gente soubesse
quanto custa querer bem,
quanta gente gostaria
de não gostar de ninguém!
Discordo de maneira veemente de quem diz ser apenas uma "quadra" e não uma "trova". Trova é a quadra com sentido completo e, pelo menos, uma rima. E ponto. O próprio Luiz Otávio, em sua coletânea "Meus irmãos, os trovadores" reconhece que as quadras com apenas uma rima, desde que tenham sentido completo, também são trovas. O resto é implicância. Mas, não querendo fugir do assunto destas reflexões de hoje, penso com saudade nas "gotas de pinho Alabarda". Eu me lembro não pelas balas de eucalipto em si, iguais a quaisquer outras balas do gênero. Mas o que tornavam as gotas de pinho Alabarda especiais eram as trovas que vinham dentro da embalagem e que eram colecionáveis. Quantos cadernos eu preenchi as capas com trovas assim...
Aos 20 anos, eu ouvi falar da "Casa do Poeta 'Lampião de Gás' de São Paulo". Fui lá assistir a uma reunião e, ao final, uma de suas principais integrantes, DIVENEI BOSELI, me falou da trova e da UBT. Para mim, a UBT era uma novidade. Mas quando ela falou em "trova", imediatamente me recordei das balas de eucalipto e das trovas que eu colecionava quando era garoto. Tempos depois, em meu convívio com os trovadores, uma delas me fez uma "revelação". Conversa vai, conversa vem, ANALICE FEITOZA DE LIMA (de saudosa memória!) e eu falamos das famosas gotas de pinho Alabarda e das trovas que vinham nela e perguntei se havia alguma relação com a UBT. Aí ela me falou de MARIA THEREZA CAVALHEIRO, poetisa e jornalista, e que ela era a responsável pelo projeto das trovas nas embalagens das balas de eucalipto.
Na foto acima, Maria Thereza Cavalheiro aparece com o escritor JORGE AMADO. Pesquisando, descobri também que Jorge Amado concedeu uma entrevista a Maria Thereza Cavalheiro e que, nessa entrevista, ele deu uma declaração muito bonita sobre a trova, hoje citada em diversos escritos da UBT e jamais creditada a Maria Thereza como jornalista que a recolheu:
"Não pode haver criação literária mais popular, que fale mais diretamente ao coração do povo do que a trova. É através dela que o povo toma contato com a poesia e sente sua força. Por isso mesmo, a trova e o trovador são imortais."
Quando a União Brasileira de Trovadores (UBT) foi fundada por Luiz Otávio em 1966, Maria Thereza foi nomeada delegada da entidade em São Paulo e, em 1969, foi eleita a primeira presidente de sua seção, cargo que ocupou até 1976.
Na foto acima, Maria Thereza aparece em uma das movimentadas reuniões da UBT realizadas em São Paulo durante sua gestão. Em 1976, porém, ela se afastou da entidade por motivos de saúde e posteriormente manteve-se fora da UBT, embora nunca tenha deixado de divulgar a trova, seja por meio das balas, seja por outros meios. Depois que ela deixou a presidência, as pessoas que a substituíram não honraram seu compromisso e a seção da UBT acabou sendo extinta. Logo em seguida, outros trovadores assumiram a UBT em São Paulo e o grupo se tornou novamente uma seção, pujante até hoje.
O que eu lastimo profundamente é que o legado de Maria Thereza Cavalheiro não seja devidamente reconhecido e valorizado. Hoje poucas pessoas na União Brasileira de Trovadores se lembram dela e do seu trabalho pioneiro. Acredito, por exemplo, que a célebre frase de Jorge Amado, tão repetida em livros de trova até hoje, dita por ele em entrevista concedida a ela não tenha seu contexto conhecido pela maioria dos que fazem a citação.
Hoje eu tenho o privilégio de ser amigo de Maria Thereza Cavalheiro e divulgar o trabalho que ela realizou em prol da trova. Essas minhas doces lembranças de infância com gosto de eucalipto e coladas em capas de caderno eu devo a ela. E isso não é pouco. Além do projeto das gotas de pinho Alabarda, Maria Thereza organizou uma antologia de poemas e trovas ecológicas, chamada "ANTOLOGIA BRASILEIRA DA ÁRVORE" e mantém uma coluna sobre trovas e trovadores no jornal "O Radar", da cidade de Apucarana (PR), além de diversas outras publicações.
Dessa forma, Maria Thereza trabalhou pela trova mais do que muitas pessoas e reconheço esse trabalho de "formiguinha", feito nos bastidores e que, longe dos holofotes, acaba não sendo devidamente valorizado. Mas eu, Pedro Ornellas e diversos trovadores e amigos da trova amamos e admiramos Maria Thereza e seu trabalho.