UM DOCUMENTO IMPORTANTE (I)
Os poetas trabalham com as palavras. Não é um “trabalho” no sentido formal, como o dos linguistas e teóricos da literatura. Entretanto, os poetas e outros escritores “produzem” aquilo com que os estudiosos trabalham: documentos.
O movimento em torno da trova, que Eno Teodoro Wanke chamou apropriadamente de “trovismo”, produz documentos que mostram os usos linguísticos do Português Brasileiro.
No mês de março de 2009 saiu o resultado do concurso de trovas de Campos dos Goytacases, tema “conhaque” para gênero lírico/filosófico e humorístico. Dentre as trovas humorísticas premiadas, uma me chamou muito a atenção por um detalhe relevante: a rima. Divido com meus eventuais leitores essa pequena joia do humor, da autoria de Nélio Bessant, trovador de Pindamonhangaba:
O conhaque, é bem verdade,
levanta mesmo a moral
daqueles que estão na idade
da bandeira a meio pau...
A trova acima me chamou muito a atenção não só por ser muito boa (de uma quase obscenidade brejeira...), como pela rima do 2o. com o 4o. Verso: moral/pau. Não tenho conhecimento de outra trova premiada que faça uso deste recurso não previsto nas gramáticas e “manuais” de versificação: a rima entre palavras terminadas em -al, -el ou -il com palavras terminadas em -au, -éu ou -iu.
É fato que alguns falantes mais conservadores e apegados à tradição escrita do idioma não reconhecem essa possibilidade de rima, um resquício, certamente, de nossa tradição purista.
Creio que todos devem ter lembranças (mesmo que sejam remotas) das suas aulas de Português na escola básica. Um dos temas é o emprego de “MAL” (advérbio, conjunção ou substantivo) e “MAU” (adjetivo). Os dois vocábulos, apesar da grafia, possuem idêntica pronúncia, configurando um caso de homônimos homófonos heterográficos. (Se alguém não gostar da expressão, sinto muito, mas aparece em qualquer gramática da Língua Portuguesa.) O caso de Mal/Mau é interessante, porque todos temos lembranças de que, quando nossa professora de português lá atrás ensinou isso para nós, era necessário que ela dissesse “mal com l” e “mau com u”. Por quê? Simplesmente porque as duas palavras são idênticas. Um professor de português, ao fazer sua exposição oral, é obrigado a dizer “mal com l” e “mau com u” porque os dois têm a mesma pronúncia: /maw/. (O “w” é usado em fonologia para transcrever o som de “u” nos ditongos.)
É fato antigo que, no Português Brasileiro, o -l final não é pronunciado com a língua erguida tocando o palato duro, como ainda se faz no Português Europeu e no Espanhol. No Brasil, as terminações -al, -el, -il, são pronunciadas, respectivamente -au, -éu, iu.
A trova do Bessant é uma prova inconteste de que, para os falantes do Português Brasileiro, não existe distinção prosódica entre os ditongos -au, -éu, -iu e -al, -el, -il. O Bessant, intuitivamente, fez uso de uma possibilidade sonora não aceita por muitos, mas que é altamente rica e sugestiva.
Coincidência ou não, as duas trovas são humorísticas. Ainda não vi esse emprego em trovas líricas ou filosóficas. Parece que os trovadores se sentem mais a vontade para inovações, liberdades ou “licenças poéticas” no humor. No entanto, o que vemos não é uma licença poética, mas um fato inequívoco e sonoramente indiscutível. Com base nessa observação, é-nos possível postular a legitimidade da rima entre palavras como “fatal/mau”, “batel/céu”, “febril/viu” etc, etc, etc... As possibilidades são infinitas. E não apenas em trovas humorísticas. Se nossos manuais de versificação não abonam esse uso legítimo do nosso português, simplesmente é porque estão desatualizados. Não existem artigos publicados sobre versificação em anais de congressos ou estudos científicos sobre o mesmo assunto em livros, dissertações ou teses. Isso se dá, em parte, porque o assunto não é abrangente e porque o maniqueísmo ideológico resultante da Semana de Arte Moderna de 1922 impregnou uma grande má vontade dos meios acadêmicos para com a poesia de forma fixa.
Quanto a nós, que hoje somos o único grupo literário coeso que faz uso de uma forma fixa, não podemos parar no tempo e usar como parâmetros de metrificação estudos antigos e fossilizados. A língua é viva e está em constante mudança. A poesia reflete as variações e mudanças do idioma, e a trova do Bessant é uma prova viva de que Eça de Queiroz tinha absoluta razão quando dizia que o brasileiro fala “português com açúcar”. Qualquer comparação entre o Português Brasileiro e o Português Europeu será ingênua. Os usos do português nos dois países são diferentes. Mesmo que o lusitano pronuncie o -l final, isso não é motivo válido para que se imponha tal critério para o nosso uso. O português do Brasil é exclusivamente nosso e nós representamos 9/10 dos falantes da língua portuguesa em todo o planeta! Já adquirimos independência linguística também.
Ouso afirmar que o nosso excelente “Decálogo de Metrificação” logo terá de passar por uma revisão, a fim de contemplar as mudanças em curso no Português do Brasil. Essa distinção se faz necessária porque, mesmo se tratando do mesmo idioma, é fato conhecido que a metrificação em Portugal é diferente da nossa e temos de reconhecer isto, analisando e documentando nossas diferenças.
Sei que pouquíssima gente vai ler este texto no site e que ele não terá eco entre os trovadores. No entanto, os poucos irmãos trovadores que me honrarem com sua leitura farão bem em tomar nota da evolução da língua.
Muitos certamente não concordariam comigo e, mesmo que lessem este artigo, continuariam achando inaceitáveis combinações iguais às do Bessant. Paciência... Talvez daqui a uns 20, 30 ou 40 anos, as futuras gerações da nossa amada UBT acabem consignando e oficializando as novas possibilidades sonoras que nosso idioma tão rico está nos legando agora.
Atualmente eu tenho 32 anos. Se eu, por acaso, viver mais 40, terei a imensa satisfação de ver os trovadores do futuro realizando novos estudos de metrificação e atualizando os parâmetros que são utilizados hoje.
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Pedro Mello – UBT / Seção São Paulo texto postado em 09.04.2009