Saudade (palestra em trovas)

                                                       SAUDADE
 
            Se é fato consumado que, em trovas humorísticas, o alvo principal é a figura da “sogra”, não menos verdadeiro é afirmar-se que em trovas líricas a “saudade” é a “vítima” preferida.  Todos os desencontros que ocorrem na vida do trovador têm uma única culpada: a Saudade.
 
            Em comum, o detalhe que ambas (sogra e saudade) começam com a letra “S”.  De “sofrimento” talvez.  Ou, quem sabe, de “sacanagem” mesmo.  Porque o que fazem com a saudade já chega a ser sacanagem.
 
            Começarei, citando Octávio Venturelli, de Nova Friburgo, para quem a nossa focalizada é “a outra”... ou a “substituta”:
 
Na cama desarrumada,
que impulsos do amor viveu,
há uma saudade deitada
no lugar que era só teu...
 
            Como foi que ela entrou no quarto, não se sabe, embora o Antonio Valentim Rufatto, de Bauru, até tente explicar:
 
Fecho as portas e janelas
mas a saudade, matreira,
zomba de minhas cautelas,
entrando pela lareira.
 
            Outros acham que ela entra é pela janela mesmo. Almerinda Liporage, do Rio de Janeiro, não satisfeita, transformou-a na própria:
 
Meu orgulho se rebela
mas o amor faz perdoar,
porque a saudade é janela
que eu nunca aprendo a fechar.
 
            Dois autores dos mais conhecidos: Edmar Japiassú Maia e João Freire Filho, chegam a insinuar algo que eu não consegui entender direito. O primeiro assim se expressa:
 
Na mais estreita amizade,
sem a menor cerimônia,
à noite, tua saudade
vem deitar com minha insônia!
 
            E o segundo arremata:
 
Na mais louca fantasia,
sem você, quando me deito,
a Saudade acaricia
a sua Ausência... em meu leito!
 
 
            E eu quase chego a acreditar nessa versão, ao ler os versos da friburguense Maria Lua:
 
Tantas propostas me faz
esta saudade sem brio,
que, num avesso de paz,
eu me rendo... ao desvario!
 
            Em certos momentos, queiramos ou não, a saudade predomina, assumindo vários disfarces: sádica, ela tortura Izo Goldman, de São Paulo, ao revelar-se exímia “decoradora de ambientes solitários”:
 
A saudade não me poupa,
desenhando fio a fio,
o perfil da tua roupa
no guarda-roupa vazio...
 
            Demonstra teimosia e coragem ao enfrentar a ira de Marilúcia Rezende:
 
Teu retrato, enraivecida,
eu rasguei, sem embaraços,
mas a saudade atrevida
juntou de novo os pedaços!...
 
            Revela covardia, segundo a denúncia de Alba Christina Campos Netto:
 
Se vais partir, fecha a porta,
mas fecha bem, sem rebate,
que a saudade não suporta
começar outro combate.
 
 
 
            Domitilla Beltrame também teve um desentendimento com a pobre e até a desacatou, quando escreveu:
 
Com altivez disse um dia:
“Ir procurar-te? Jamais!”
Mas a saudade vadia
não respeita o “nunca mais”...
 
            Izo Goldman tem tido sérios problemas ao tentar dormir:
 
Dia e noite em algazarra,
depois que te viu partir,
a saudade é uma cigarra
que não me deixa dormir...
 
            Em desespero ele pega a viola e ensaia uma cantoria, no intuito de - quem sabe – intimidar a cigarra.  E vejam o que acontece:
 
A vida pôs, por maldade,
tanta distância entre nós,
que, quando eu canto, é a saudade
que faz a segunda voz...
 
            Com a Edna Valente ocorreu algo semelhante e ela foi mais contundente: transformou o “desmancha-prazer” em “tira-gosto”.  Isto é: “comeu” a saudade”:
 
Refúgio que não consola
mas engana de verdade,
é beber uma viola,
degustando uma saudade!...
 
            Servir de alimento, aliás, é fato corriqueiro no currículo desta camaleônica figura. Bem antes da Edna, Héron Patrício, embora com mais diplomacia, já utilizara esse expediente:
 
No calor da mocidade
há banquetes de carinhos...
- Depois o pão da saudade
mata a fome dos sozinhos!
 
 
 
            Mais estranha ainda foi a reação de Eduardo Toledo, de Pouso Alegre, que, embriagado de amor, criou esta etílica imagem:
 
No engenho do desencanto
vou moendo a soledade
e destilando o meu pranto
no alambique da saudade!
 
            Com a  Élbea Priscila, de Caçapava, aconteceu também algo incrível, aqui narrado em três capítulos.  Primeiramente a trovadora alegou que estava sendo seguida e vigiada:
 
Embora dela me esquive,
a saudade, tão ladina,
tem manhas de detetive,
e me espreita... em cada esquina...
 
            Depois veio a fase das acusações:
 
Adeus!  A sentença triste
minha vida desalinha,
e a saudade, dedo em riste,
vem dizer que a culpa é minha!
 
            E, por último, a capacidade de entendimento e aceitação, diante do sofrimento da autora:
 
Numa visita diária
a um coração em carência,
a saudade, solidária,
tenta suprir tua ausência...
 
            E suprir ausências é justamente a especialidade da Dona Saudade, que já socorreu por duas vezes o João Paulo Ouverney, de Pinda. Primeiro, agindo como encadernadora:
 
És, saudade, realmente,
artesã que em hábil lida,
encaderna, no presente,
páginas soltas da vida...
 
 
 
            E depois, transformando-se numa...  embarcação:
 
Saudade é imenso navio
no mar de minha existência,
a navegar no vazio
deixado por sua ausência...
 
            E com a mesma facilidade com que corta as ondas dos mares, é também capaz de vencer as distâncias dos desertos da alma, conforme o testemunho do trovador-caubói” Waldir Neves:
 
Saudade é uma diligência
que nos leva, docemente,
com repetida freqüência,
ao velho oeste da gente!
 
            Como se pode notar, nem tão malvada ela é.  Usando seus dotes de escritora, já livrou muita gente de sérios apuros. O potiguar Luiz Rabelo que o diga:
 
Romance da mocidade
eu quis, um dia, fazer:
- Tomou-me a mão a saudade
e então se pôs a escrever...
 
            E, mais do que isso, atreve-se até a assinar os textos, não é mesmo, Marilúcia Rezende?
 
Eu suplico: “volte breve”,
num bilhete... e na verdade,
a esperança é quem escreve
e quem assina é a saudade!
 
            No naufrágio descrito por Maria Lua ela também é fundamental:
 
Se o mar do orgulho impulsiona
o naufrágio da paixão,
a saudade vem à tona...
com propostas de perdão!
 
 
 
 
            Agindo como luminária, eis outro importante capítulo na história desta saudade, respectivamente nos depoimentos de José Augusto Rittes e Colombina:
 
 
Contemplo, à luz da saudade,
a meia cama vazia...
Outrora, nessa metade,
meu mundo inteiro cabia...
 
Saudade – lâmpada acesa
no altar da recordação,
onde a ternura e a tristeza
rezam a mesma oração!
 
            Porém, que ninguém se atreva a menosprezá-la, porque ela sabe ser implacável, quando necessário, a ponto de gerar a reclamação do Edmar Japiassú:
 
A despedida foi breve
e o nosso adeus sem afrontas...
Mas a saudade se atreve
a vir cobrar velhas contas!
 
            Numa destas cobranças, ela despertou um instinto homicida em Waldir Neves:
 
Sofro de “impulso assassino”,
que foge à minha vontade.
Quando vem... não me domino
e pego a “matar saudade”! 
 
            No entanto  (só pra concluir),  caso você, um dia, também venha a ter esse impulso, desista do seu intento pois, tentando encerrar essa polêmica a respeito de saudade (que, diga-se de passagem, nunca se encerra, pois é eterna), no livro “Conversando com a Saudade”, do escritor taubateano Emílio Amadei Berings, o poeta Carlos Kluve afirmou, muito tempo atrás:
 
Eu quis matar a saudade
e tanto tempo esperei!
Agora, quanta saudade
da saudade que matei...
 

 

             Ah, mas quer saber de uma coisa? Antes mesmo que alguém a matasse, o Roberto Medeiros... meio ressabiado e prevenido contra essa história da saudade "suprir ausências" e temendo que um dia ela também se ausentasse, encerrou de vez a questão e fez-lhe um romântico convite que ela, como mulher, não hesitou em dizer sim, calando de vez a concorrência:

Se indagas por novidade,
constrangido, amor, te digo:
em tua ausência, a saudade
resolveu casar comigo!

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            E, ao que tudo indica,  foram felizes para sempre!