TROVADORES INESQUECÍVEIS IX
EVA REIS
(texto de Thereza Costa Val, da UBT Belo Horizonte, para www.falandodetrova.com.br)
Quem acompanha minhas páginas sobre os trovadores que integraram a UBT/BH e hoje fazem parte de uma Seção Especial, lá no etéreo, pode observar um fato interessante: alguns deles, além de se inserirem em nossa Seção, pertenciam a uma outra, que era a oficial. É o caso da trovadora Eva Reis. Oficialmente, ela era Delegada da União Brasileira de Trovadores em Uberaba, mas era frequentadora assídua das reuniões em Belo Horizonte.
Eva Reis - nome literário de Eva de Souza dos Reis Bakô - tinha duas residências, pode-se dizer fixas: uma aprazível morada em Uberaba e um belo apartamento no centro de Belo Horizonte. Amava as duas cidades. Ora estava em uma, ora em outra. E tinha orgulho em pertencer à UBT de cá e de lá.
A trovadora mineira, nascida em Uberaba, cumpriu uma história na trova brasileira. Já na década de 1940, frequentava um ponto de encontro dos intelectuais da época, na confeitaria chamada “A Tirolesa”, no centro da cidade de Belo Horizonte. Ali se reuniam trovadores que despontavam nas lides literárias e se tornaram famosos, como Nilo Aparecida Pinto, Peri Ogibe Rocha, Soares da Cunha, Djalma Andrade e outros. Eva Reis era presença certa, ofertando sua graça feminina jovem aos encontros. Era uma pioneira, brilhando entre os poetas de então.
Seu livro “Fiandeira”, ilustrado com desenhos do artista José Maria dos Reis Junior, seu irmão, confirmou seu pioneirismo na literatura mineira, como a primeira mulher a lançar um livro de trovas. Segundo palavras de Rachel de Queiroz, que prefaciou seu livro “Cantares - Trovas de Outono”, o livro “Fiandeira correu mundo por França, Portugal, Espanha, Argentina, sem contar todo o Brasil”. Vale a pena ler o prefácio da renomada escritora ou, talvez, transcrevê-lo. Citarei, porém, somente este parágrafo: “A trova, bem o sabemos, não é só um gênero poético, é uma vocação específica. É a linguagem particular do trovador, sua forma de exprimir, concentradas dentro dos quatro versos da redondilha, todas as suas emoções, tal como um jardim inteiro se exprime num pequeno botão de rosas.”
Sobre o livro, uma abalizada opinião: “Dá-nos Eva Reis, em Fiandeira, trovas que lemos com prazer e encantamento. Tem verdadeiro amor e inclinação para o gênero”. Quem assim opinou: Luiz Otávio. Outros literatos importantes também deram depoimentos favoráveis ao Fiandeira.
Quando Luiz Otávio lançou o livro “Meus Irmãos, os Trovadores” em 1956 - marco da história da trova brasileira - Eva Reis era um dos nomes integrantes da antologia.
O lançamento da 1ª edição do livro ( mil exemplares) “Cantares – Trovas de Outono”, em Belo Horizonte, em outubro de 1997, aconteceu com as devidas pompas e circunstâncias, contando com as presenças do Secretário da Cultura de Minas Gerais,diversas autoridades, trovadores, acadêmicos, políticos e amigos. Tive o prazer de participar da festa memorável.
“Cantares” é um livro de 284 páginas, contendo 639 trovas numeradas, citações, depoimentos de trovadores e jornalistas, e opiniões favoráveis de trovadores experientes, como Aluísio Alberto da Cruz Quintão, Mercês Maria
Moreira e P. de Petrus, que leram os originais, além do mencionado prefácio de Rachel de Queiroz. Na página 5, há um retrato da autora na juventude, desenhado por seu irmão.
“Fiandeira” e outros livros de Eva Reis, quais sejam: “Avenca, ó Verde Avenquinha”, “Rimance da Vila dos Eucaliptos”- poesias – Rimance da Vila dos
Eucalíptos”- crônicas - estão esgotados. Seu estudo “A Trova na Trova” não chegou a ser publicado em livro.
Eva Reis ganhou fama de grande declamadora, apresentando-se em festas e saraus literários, com uma certa ousadia no trajar. Contam que ela fazia suas apresentações, na mocidade, com os pés descalços e uma rosa presa a um deles. Quando a conheci, Eva já não declamava dessa maneira. Ainda assim, era diferente. Usava constantemente um só tipo de calçado: uma sandália, que hoje está na moda, mas na época era um detalhe que a distinguia das demais mulheres. A sandália simples, sem salto, tinha uma tira de couro a prender o dedão do pé – mais parecia um chinelo - lembrando a simplicidade de São Francisco de Assis. Talvez Eva tenha sido também precursora do tipo de sandália que hoje chamamos “rasteirinha”. Vestisse roupa chique ou não, fizesse calor ou frio intenso, esse foi o seu estilo de calçado, usado pelo resto da vida. Certa vez, Eva me explicou que assim andava para cumprir uma promessa.
A trovadora uberabense, entre outras entidades literárias, era Membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro, da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, da União Brasileira de Trovadores de Belo Horizonte e da UBT de Uberaba. No exercício da função de Delegada em Uberaba, Eva promovia reuniões e atividades com trovadores locais. Visto que começou cedo e jamais deixou de construir suas trovas, por quase toda a vida, ela atuou como trovadora.
Eva de Souza dos Reis Bakô - sobrenome adquirido no casamento – nasceu em 11 de dezembro de 1922 e faleceu em 15 de agosto de 2010. Seu filho único Estevão Antônio dos Reis Bakô era a “luz do seu caminho”, conforme suas palavras.
Como trovadora participante da UBT/ BH, Eva concorria em nossos concursos, saindo-se muito bem neles. Obteve também premiações em concursos nacionais de trovas, embora não concorresse frequentemente.
Entre as muitas trovas líricas, filosóficas ou humorísticas do livro "Cantares - Trovas de Outono" escolhi algumas de minha preferência, que são:
Chego ao outono da vida Sou a flor de ritmo leve
vendo a folha da ilusão com luares de abandono
bailando verde, garrida, - flor presente, em tempo breve,
sem querer cair no chão. exalando o seu outono.
Chega o outono... e já me prende A trova que faz história
num derradeiro festim; e fica sendo a maior
a ilusão ainda acende é aquela que, de memória,
uma luz dentro de mim. toda gente diz de cor.
Tem acalanto que enleia Uberaba, escuto agora,
e surge igual lua nova: sinal que do campo vem:
vai crescendo, fica cheia, se um boi mugir, não demora,
e nas rimas brilha a trova. logo aparece o meu bem.
Que chapéu extravagante Nos pés só calço uma sola,
dessa madame travessa! presa por alça num dedo;
Virou moda de elegante quantos me chamam carola...
-pôr chapéu sem ter cabeça. mas é de Deus meu segredo.
A morte? Não! Vou viver Ficou pronta a criação,
de uma luz que me renova. sem um defeito sequer,
Imortal eu hei de ser: e atingiu a perfeição,
sou poetisa da trova. quando Deus fez a mulher.
No outono, seca, sofrida, No garimpo das calçadas,
sou a folha da ilusão; pivetes em mutirão
vou pairando, esmaecida, são as pedras atiradas
por sobre a relva no chão. na consciência da Nação.
Quando o outono se acabar Tenho, sim, um colar de ouro
e levar-me o frio inverno, que tem do amor todo o brilho,
de estrelas irei fiar -um colar que é meu tesouro:
as trovas no céu eterno. são os braços de meu filho.
Vamos florir o caminho Ele se vestiu de gato
para um futuro risonho, para entrar na casa dela.
sem deixar nenhum espinho Levou que susto! De fato,
ferir esse lindo sonho. tinha gato na janela...
Do seu primeiro livro, uma trova correu de boca em boca pelo Brasil, espalhando o pensamento filosófico/ humorístico da autora em rimas que, àquela época, eram usuais. Às vezes, uma única trova basta para tornar conhecido o nome do autor. Um verdadeiro “achado”:
Ao contrário da mulher,
a trova tem o seu jeito:
se cai na boca do povo,
mais aumenta o seu conceito!
Ainda do seu primeiro livro, anoto a trova de abertura que tornou Eva Reis conhecida como a fiandeira de ilusão:
Sou fiandeira da ilusão,
vivo a tecer, vivo a fiar...
Já prendi teu coração
nas malhas do meu tear.
Na abertura de “Cantares – Trovas de Outono” , Eva inclui versos esparsos de autoria do imortal poeta simbolista mineiro Alphonsus de Guimaraens, dos quais transcrevo estes, que mais me tocaram:
As folhas tombam quando vem o outono...
E ninguém as socorre!
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Postado em 30.03.2011 - pesquisa e texto de Thereza Costa Val