Laurindo Rabelo

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(texto de José Fabiano, mineirim de Uberaba)

Laurindo Rabelo

(1826 – 1864)

 

Da “Enciclopédia de Literatura Brasileira”, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa. “Laurindo José da Silva Rabelo: De origem humilde, mestiço, desengonçado, o que lhe valeu o apelido de ‘o poeta lagartixa’, levou uma vida infeliz, tendo tentado em vão uma carreira, afinal dipl. Medicina, mas sem êxito no seu exercício, poeta popular, improvisador, boêmio, escreveu uma poesia pessimista, atrevida, revoltada, amarga, reflexo de uma alma sofredora.”

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Antenor Nascentes

 

            “Quem escreveu uma obra como o Adeus ao mundo, guindou-se aos altos cimos da poesia e apesar da bagagem que deixou, pequena e de valor muito relativo, é de fato um grande poeta.

            A vida de Laurindo Rabelo explica bem a natureza e o valor da obra dele.

            Os biógrafos dão-no como mestiço com sangue cigano.

            Um deles somente o dá como cigano puro e com este deve estar a razão, pois os ciganos são geralmente endógamos.

            Laurindo devia ser trigueiro, de cabelos lisos, com possível aparência de caboclo.

            O retrato que aparece em algumas edições de suas obras não revela traços de mestiçamento.

            Estudos modernos apresentam os ciganos como um povo de raça branca, partindo do noroeste da Índia no século XIII, em direção à Síria, onde se dividiu em dois ramos.

            Um desses ramos se dirigia ao Egito e outro se espalhou pelos países da Europa, chegando até a Península Ibérica.

            O fato, porém, é que a sociedade de então, que não reparava, como a de hoje não repara, no mestiço claro, de cabelos lisos, mas com longínquos traços negróides na ossatura da face, tinha reservas para com ele, por causa da cor da tez.

            Preconceitos, baseados ou não, doenças, desgraças na família, falta de recursos o amarguraram e o tornaram irritadiço.

            Laurindo brigava em toda parte, em toda parte se indispunha com as pessoas; no seminário, na Faculdade de Medicina, nas repartições públicas, na tropa.

            Assim, era difícil vencer na vida.

            Nos momentos de revolta, usava contra a sociedade a arma da sátira; nos momentos de depressão, mostrava-se um elegíaco.

            Não é de admirar sua morte precoce.

            Roído de tantos desgostos, faltou-lhe a resistência e morrer aos 38 anos.

            Muito do que escreveu se perdeu. Depois de sua morte, amigos solícitos andaram recolhendo daqui e dali poesias e acrescentando-as às edições que publicavam.

            Para a elaboração da edição que ora apresentamos, servimo-nos da de Joaquim Norberto e fizemos as correções apontadas por Teixeira de Melo no Volume III dos Anais da Biblioteca Nacional.

            Juntamos os epigramas, que até agora têm andando esparsos, e as modinhas, dando a música de algumas.

            Só não incluímos poesias eróticas. Fiquem elas no inferno da Academia, onde Constâncio Alves as depositou.

            Cremos ter contribuído para dar melhor idéia do conjunto da obra do grande poeta.”

 

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 “Adeus ao Mundo

 

I

Já no batel da vida / Sinto tornar-me o leme a mão da morte: / E perto avisto o porto / Imenso nebuloso, e sempre noite, / Chamado – Eternidade! / Como é tão belo o sol! Quantas grinaldas / Não tem de mais a aurora! / Como requinta o brilho a luz dos astros! / Como são recendentes os aromas / Que se exalam das flores! Que harmonia / Não se desfruta no cantar das aves, / No embater do mar e das cascatas, / No sussurrar dos límpidos ribeiros, / Na natureza inteira, quando os olhos / Do moribundo, quase extintos, bebem / Seus últimos encantos!

 

II

 

Quando eu guardava, ao menos na esperança, / Para o dia seguinte o sol de um dia, / De uma noite o luar para outras noites; / Quando durar contava mais que um prado, / Mais que o mar, que a cascata erguer meu canto, / E murmurá-lo num jardim de amores; / Quando julgava a natureza minha, / Desdenhava os seus dons: ei-la vingada: / Cedo de vermes rojarei ludíbrio, / E vida alardearão fracos arbustos / Sobre meu lar de morto! A noite, o dia, / O inverno, o verão, a primavera, / A aurora, a tarde, as nuvens, e as estrelas, / A rir-se passarão sobre meus ossos! / Não importa: não é perder o mundo / O que me azeda os pálidos instantes / Que conto por gemidos. Meu tormento, / Minha dor, é morrer longe da pátria, / As mãe, e dos irmãos que tanto adoro.

 

III

 

Quando da pátria me ausentei, não tinha / Nada, que lhes deixar, que lhes dissesse / O que eram eles dentro de minh’alma. / Mendigo, a quem cedi pequena esmola, / Deu-me quatro sementes de saudades; / Ao meu jardim doméstico levei-as, / Cavei, reguei a terra com meu pranto, / E plantei as saudades. Soluçando / Chamei ali os meus: ‘Aqui vos deixo / (Disse apontando a plantação) ‘em flores / ‘Minh’alma toda inteira: aqui vos deixo / ‘Um tesouro enterrado. Jóias, oiro, / ‘Riquezas, não, não tem, porém na terra / Estéril não será.’ Ondas de pranto / Afogaram-me a voz: houve silêncio; / Palpei de novo o chão; vi que de novo / Cavado estava! A terra se afundara, / E as sementes nadavam sobre lágrimas, / Que minha mãe e minha irmã choravam... / Replantei-as, orei, beijei a terra, / E parti... Trouxe d’alma só metade; / E o coração? ... deixei-o num abraço.

 

IV

 

Certo estou de que a planta, já crescida, / Terá britado flor. Se ao menos dado / Me fosse colher uma... ver a terra / Pelo pranto dos meus santificada! / Se uma dessas saudades enfeitar-me / Viesse a minha essa, ou meu sudário, / Ou, pela mão materna transplantada, / Encravar-me as raízes no sepulcro... / É tão pouco, meu Deus!... Eu não vos peço / Soberbo mausoléu, estátua augusta / De túmulo de rei. Assaz desprezo / Esses gigantes de oiro / Com entranhas de pó. Mortalha escassa / De grosseiro burel, que bordem lágrimas; / Terra só quando baste p’ra um cadáver, / E as minhas saudades, e entre elas / Uma cruz com os braços bem abertos, / Que peça a todos preces. Terra, terra / Perto dos meus e no terrão da pátria, / É só quando suplico.

 

V

 

A morte é dura, / Porém longe da pátria é dupla a morte. / Desgraçado do mísero, que expira / Longe dos seus, que molha a língua, seca / Pelo fogo da febre, em caldo estranho; / Que vigílias de amor não tem consigo, / Nem palavras amigas que lhe adocem / O tédio dos remédios, nem um seio, / Um seio palpitante de cuidados / Onde descanse a lânguida cabeça! / Feliz, feliz aquele, a quem não cercam / Nesse momento acerbo indiferentes / Olhos sem pranto; que na mão gelada / Sente a macia destra d’amizade / Num aperto de dor prender-lhe a vida! / Feliz o que no arfar da ânsia extrema / De desvelada irmã piedoso lenço, / Úmido de saudades vem limpar-lhe / As frias bagas dos finais suores! / Feliz o que repete a extrema prece, / Ensinada por ela, e beijar pode / O lenho do Senhor nas mãos maternas! / Desgraçado de mim!... Talvez bem cedo / Longe de mãe, de irmãos, longe da pátria / Tenha de me finar... Ramo perdido / Do tronco que o gerou, e arremessado / Por mão de Gênio mau à plaga alheia, / Mirrarei esquecido! Os céus o querem, / Os Céus são imutáveis: aos decretos / Do Senhor curvarei a fronte humilde, / Como cristão que sou. Eternidade, / Recebe-me a teu bordo!... Adeus, ó mundo!

 

VI

 

Já sinto da geada dos sepulcros / O pavoroso frio enregelar-me... / A campa vejo aberta, e lá do fundo / Um esqueleto em pé vejo a acenar-me... / Entremos. Deve haver nestes lugares / Mudança grave na mundana sorte; / Quem sempre a morte achou no lar da vida. / Deve a vida encontrar no lar da morte. / Vamos. Adeus, ó mãe, irmãos, e amigos! / Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!... / Adeus, que vou viagem de finados... / Adeus... adeus... adeus! / Adeus, ó sol que, amigo, iluminaste / Meu pobre berço com raios teus... / Ilumina-me agora a sepultura: - / Adeus, meu sol, adeus! / Florezinhas, que quando era menino / Tanto servistes aos brinquedos meus, / Vegetai, vegetai-me sobre a campa: - / Adeus, flores, adeus! / Vós, cujo canto tanto me encantava, / Da madrugada alígeros orfeus, / Uma nênia cantai-me ao pôr da tarde: / Passarinhos, adeus! / Vamos. Adeus ó mãe, irmãos, e amigos! / Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!... / Adeus: que vou viagem de finados!... / Adeus!... adeus!... adeus!”