O dia em que a musa desmantelou a trova...
A palavra “musa” sempre evoca doces imagens. Geralmente uma mulher distante ou inacessível a quem se jura amor eterno ou por quem o poeta padece de uma incurável dor de cotovelo. Tema do concurso dos Magníficos Trovadores dos Jogos Florais de Nova Friburgo (1995), a ideia rendeu trovas memoráveis, como esta de Aloísio Alves da Costa:
Volátil, discreta e doce,
no instante certo presente,
a musa é como se fosse
o anjo-da-guarda da gente...
Ou estas, do antológico José Tavares de Lima:
Não foi musa de um momento...
Desde que a vi, deslumbrado,
alugou meu pensamento
por tempo indeterminado!
Se em meus poemas dispersos
falo sempre de fracassos,
é que a musa dos meus versos
vive ausente dos meus braços!
Sozinho, não desespero,
pois no verso encontro alento...
Não tenho a musa que eu quero,
mas tenho a musa que invento!
Mas se a figura da Musa, talvez pela seriedade do assunto, não costuma render trovas humorísticas, quase rendeu um infarto para o nosso Mestre João Freire Filho nos XL Jogos Florais de Nova Friburgo, em 1999.
Aconteceu o seguinte:
No sábado à noite havia a escolha da Musa dos Jogos Florais, em que as candidatas desfilavam e diziam uma trova dentre as premiadas no âmbito nacional. Um júri composto pelos Magníficos votava nas candidatas e a musa era eleita nesse escrutínio. Um acontecimento memorável. O júri era composto por medalhões como João Freire Filho, José Maria Machado de Araújo, Waldir Neves, Arlindo Tadeu Hagen, Carolina Ramos, Antônio Carlos Teixeira Pinto, Otávio Venturelli... só para termos uma ideia do glamour. Ainda existe a coroação da musa, mas os magníficos já não fazem parte do júri. O restante permanece igual. A ideia é que o concurso não seja apenas de beleza.
Pois naquele 1999, uma das candidatas foi escalada para dizer uma trova de Orlando Brito, Menção Especial, tema “Bilhete”. Atente para o terceiro verso:
Não consulto malmequeres.
Basta um bilhete, querida,
e o “sim” ou “não” que me deres
vai decidir minha vida...
E a musa... desmantelou a trova...
Quando foi desfilar e dizer a trova, a moça tacou um “você” no terceiro verso, desmantelando completamente a trova: “e o 'sim' ou 'não' que você me deres”... Eu pensei que o João Freire fosse ter um ataque! Ele ficou muito bravo. E bravo é apelido. Quem o conhece sabe que não estou exagerando. Professor de Português na Universidade Federal do Rio de Janeiro, João sempre foi um defensor da pureza vernacular de nossa língua.
Então imagine o “atentado” duplo da coitada da moça: o verso ficou quebrado (com 9 sílabas!), o que já seria suficiente para a indignação do João... Mas o pior, talvez, seja o fato de o verbo estar na 2ª pessoa do singular e “você” ser um pronome que leva os verbos de um enunciado para a 3ª pessoa... Quer dizer, além do verso quebrado, ainda tivemos uma mistura de pessoas gramaticais no enunciado...
Confesso que fiquei com dó. Pobre moça...
É preciso dizer que ela não foi eleita a
Musa dos Jogos Florais?...