Beatriz Xavier Flandoli
Ganhei um presente de chorar. Não eram espinhos, nem choques, nem insultos. Ganhei da minha prima Fátima, que o encontrou em Curitiba, cidade onde mora, e o guardou para me dar com todo o carinho do mundo. Um livro de poesias completas de Adelmar Tavares. Esta edição reúne obras de seus livros anteriores, desde 1907 até 1946. O autor encerra sua introdução afirmando que “velho ou fiel, como queiram interpretá-lo, é um livro dos meus cantos, cantos de um homem que viveu toda sua vida, apenas, pelo coração”.
Explodi em lágrimas de emoção ao ganhar o livro. Primeiro, porque Fátima gosta tanto do autor quanto eu, e, generosa, deu-o a mim, que com certeza não faria o mesmo. Segundo, porque ela o conseguiu num sebo. Com dedicatória do autor. Para um sobrinho. Com data de 1953. Fiquei indignada. Reclamei à minha prima querida: como pode esse sobrinho ter mandado o livro para o sebo? E ela, rindo: “Veja as datas: provavelmente o sobrinho também já morreu”. A possibilidade de o livro ter ido parar no sebo pela morte do sobrinho me consolou um pouco.
Explico: Adelmar Tavares foi um poeta muito apreciado em minha cidade num tempo em que estudávamos uma coisa antiga, antiga, chamada declamação, “a arte de dizer poesias”. Vez ou outra surgiam eventos remanescentes desses dias longínquos. Num deles, Paulo Autran passou por Campo Grande com um espetáculo belíssimo chamado “Quadrantes”, em que recitava poesias.
Abro o livro: tantos poemas conhecidos, decorados nas aulas de poesia — Aqueles ternos como Maria, a flor de açucena, por quem derramei lágrimas na infância e a quem o poeta roga a Deus que se viva, lhe dê um lar perfumado, caso contrário, uma estrela. Vicenza, a que virou santa e O milagre de Nossa Senhora Aparecida, que Fátima declamava tão bem:
“Oh, lá, canoeiros! Oh, lá, companheiros!
Oh, lá, pescadores que estais a pescar!
Milagre! Milagre! Fazei vossos lanços que Nossa Senhora já me apareceu!
E os homens todos tocados
De uma alegria sem par
Encheram os barcos de peixe
Para o conde de Assumar”.
Dindinha Lua, que vinha por trás da serra, redonda e branca como uma roda de andor de carro de procissão, recebendo pedidos em profusão: um vestido, um tostão, um amor. E as Barcaças:
“As barcaças do cais estão cansadas, amarradas, ancoradas...
As brancas velas enroladas, enroladas e perdidas, como braços de enforcados...
No negror da noite escura, que a água do cais faz mais escura [...]
Elas vieram do mar alto... Foram longe, longe...
Levaram roupas para as crianças,
Levaram trigo para os enfermos,
Vinhos e jóias para os felizes,
Madeiras para tálamos e ataúdes...
Dias seguidos, noites seguidas, elas levaram a navegar...
[...] Muitas vezes, no luzeiro de um céu baixo, de tocar,
As barcaças, velas brancas, todas brancas de luar,
Pareciam noivas lindas a caminho de casar...
Outras vezes, desnorteadas, sacudidas pelas fúrias dos medonhos vendavais,
Sob o céu sem uma estrela,
As barcaças, aterradas de pavor
Eram esquifes navegando pela morte no negror...
Os barqueiros contam que ouvem, nessas noites,
Vozes soltas, pelas águas a chamar...
E as barcaças vão andando, vão rumando sem parar,
‘Rosa branca’, ‘Navegante’, ‘Luz do Dia’, ‘Flor do Mar’ [...]
Por isso, agora, compreendo, essa triste exaustão em que vos encontrais,
Velhas barcaças, amarradas, ancoradas, fatigadas, na noite imensa, no cais...”.
Depois, um poema sem nome: “A noite baixou silente, e, então, cantei tristemente as mágoas... para esquecê-las... / E a Noite, ouvindo o meu canto, que era a música de um pranto, encheu-se toda de estrelas...”.
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Amei as poesias de Adelmar Tavares que acompanharam meus jovens anos. Esse livro, amarelado pelo tempo, que chega aos meus olhos trazendo lágrimas ao ser aberto, preenche tardes de sábado com poesias. E, em muitas e muitas noites, a música dessas poesias também se encanta em estrelas...
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BEATRIZ XAVIER FLANDONI é Psicóloga e Mestre em Educação. Professora de Psicologia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal, em Corumbá. Doutoranda em Educação pela UFMS/Campo Grande.